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#18/Livre-arbítrio existe?

Foto do escritor: Cadu LemosCadu Lemos

Atualizado: 15 de jul. de 2024





Impelido por um post recente do meu amigo Fábio Adiron, trago aqui um pouco de uma discussão antiga e polêmica. Nosso senso de volição, ou o livre-arbítrio. Importante destacar que aqui não se defende que um ou outro não existam, mas há a intenção de se provocar um vislumbre da possibilidade de que não somos agentes de nossas escolhas, aquilo que a autora Kat (Katrijn) van Oudheusden descreve como "A ilusão da volição" (veja mais aqui).

A visão de que o livre arbítrio pode ser uma ilusão tem raízes profundas na história do pensamento filosófico e científico. Abaixo, um resumo de como essa visão se manifestou ao longo dos séculos:


Antiguidade

Filosofia Grega


Determinismo dos Pré-Socráticos: Filósofos como Heráclito e Parmênides exploraram ideias sobre o determinismo natural. Heráclito por exemplo, acreditava que tudo estava em constante mudança e que essa mudança era governada por um logos (razão ou lei) universal. A ele, são atribuídas duas frases muito interessantes:


"Ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez. Pois quando isso acontece, já não se é o mesmo; assim como as águas, que já serão outras." e “Seu caráter determina suas ações e as ações constroem seu destino - o que significa que você é o criador de seu próprio destino.” 

Estoicismo: Os estóicos, como Epicteto e Sêneca, defendiam que o universo era governado por um logos racional e que a liberdade humana consistia em viver de acordo com a natureza desse logos. Acreditavam que eventos eram predeterminados, mas ainda assim enfatizavam a importância da aceitação e da virtude.



Idade Média

Teologia Cristã


Santo Agostinho: Introduziu a ideia de que Deus tinha presciência de todos os eventos, o que levantou questões sobre como o livre arbítrio poderia coexistir com a onisciência divina. Agostinho argumentou que, embora Deus soubesse o que aconteceria, os humanos ainda tinham a capacidade de escolher livremente suas ações.


Tomás de Aquino tentou reconciliar o livre arbítrio com a providência divina, sustentando que Deus movia todas as coisas, mas os seres humanos ainda tinham o poder de tomar decisões livres dentro desse quadro.



Sofonisba Anguissola



Idade Moderna

Filosofia e Ciência


René Descartes afirmou a dualidade entre mente e corpo, sugerindo que a mente tinha a capacidade de tomar decisões livres, embora o corpo fosse sujeito a leis físicas.


Baruch Spinoza adotou uma visão determinista, argumentando que tudo no universo, incluindo os pensamentos e ações humanas, era o resultado de causas necessárias. Para ele, o livre arbítrio era uma ilusão, pois as pessoas não entendem as verdadeiras causas de seus desejos e ações.


David Hume propôs que a ideia de causa e efeito era uma construção mental baseada em hábitos e experiências passadas, o que implicava que o livre arbítrio poderia ser compatível com o determinismo, uma visão conhecida como compatibilismo.



Século XIX e XX

Ciência e Filosofia


Charles Darwin: A teoria da evolução de Darwin introduziu a ideia de que o comportamento humano poderia ser explicado em termos de adaptação e seleção natural, sugerindo que muitas de nossas ações são influenciadas por fatores biológicos.


Sigmund Freud argumentou que muito do comportamento humano era influenciado por processos inconscientes, o que limitava a noção de livre arbítrio consciente.


B.F. Skinner: O behaviorismo de Skinner enfatizou que o comportamento humano poderia ser totalmente explicado por experiências passadas e condicionamento, negando a existência do livre arbítrio.



Era Contemporânea

Neurociência e Filosofia


Os experimentos de Benjamin Libet na década de 1980 mostraram que a atividade cerebral precede a consciência de tomar uma decisão, sugerindo que o cérebro "decide" antes que a mente consciente esteja ciente disso.


Sam Harris e Robert Sapolsky (neurocientistas) usam evidências neurocientíficas e biológicas para argumentar que o livre arbítrio é uma ilusão, sustentando que nossas ações são determinadas por uma complexa interação de fatores genéticos, neurológicos e ambientais.


Veja o vídeo de uma conversa entre os dois, aqui.


Tanto Sam Harris quanto Robert Sapolsky argumentam que o livre-arbítrio é uma ilusão, mas eles abordam o tema de maneiras ligeiramente diferentes.




Sam Harris e a Ilusão do Livre-Arbítrio


Sam Harris, um neurocientista e filósofo, argumenta que o livre arbítrio é uma ilusão. Em seu livro "Free Will", Harris afirma que nossas ações são determinadas por uma combinação de genética, neurobiologia e ambiente, elementos sobre os quais não temos controle consciente.


Harris usa a neurociência para sustentar sua visão. Estudos de neuroimagem, como os realizados por Benjamin Libet, citado acima, mostraram que a atividade cerebral que precede uma decisão consciente pode ser detectada antes que a pessoa se torne consciente de sua própria intenção de agir. Isso sugere que o cérebro já tomou a decisão antes que a consciência a registre, desafiando a noção de que temos controle consciente sobre nossas ações.


Harris também argumenta que, se pudéssemos "rebobinar" a fita da vida uma quantidade indefinida de vezes, com as mesmas condições iniciais, sempre tomaríamos as mesmas decisões. Isso porque nossas escolhas dependem de fatores pré-determinados que moldam quem somos e como respondemos a diferentes situações.


Robert Sapolsky e o Determinismo Biológico


Sapolsky, um renomado neurocientista e biólogo, compartilha uma visão semelhante ao afirmar que o livre arbítrio não existe no sentido tradicional. Em seu livro "Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst", Sapolsky explora como o comportamento humano é moldado por uma complexa interação de fatores biológicos e ambientais.


Sapolsky argumenta que tudo, desde a atividade genética até os eventos que ocorrem milissegundos antes de uma ação, influencia nosso comportamento. Ele enfatiza que fatores como hormônios, neurotransmissores, e até mesmo a estrutura do cérebro, desempenham papéis cruciais na determinação de nossas ações. Para Sapolsky, o comportamento humano é o resultado de uma cascata de eventos biológicos que começam muito antes de qualquer pensamento consciente.


Ele também menciona estudos em psicologia e psiquiatria que mostram como traumas e experiências na infância podem moldar profundamente o comportamento adulto. Isso reforça a ideia de que o livre arbítrio é limitado, sendo nossas ações o resultado de uma intrincada rede de influências biológicas e ambientais.


Ambos os autores concordam que o livre-arbítrio é uma ilusão e que nossas ações são determinadas por fatores fora de nosso controle. No entanto, Harris foca mais nas implicações sociais e éticas dessa visão, enquanto Sapolsky enfatiza o impacto no autoconhecimento e na autocompaixão. Ambos veem a aceitação da falta de livre-arbítrio como uma oportunidade para promover uma maior compreensão e empatia nas interações humanas.


A ideia de que o livre-arbítrio não existe pode ter um impacto significativo na nossa percepção de responsabilidade pessoal e em nosso dia a dia de uma forma geral. Aqui estão alguns pontos a considerar:


Redefinição de Responsabilidade

Se acreditarmos que nossas ações são determinadas por fatores fora de nosso controle, isso pode mudar a maneira como entendemos a responsabilidade pessoal. Em vez de ver as pessoas como totalmente responsáveis por suas ações, podemos começar a ver o comportamento humano como o resultado de uma complexa interação de fatores biológicos, psicológicos e ambientais, trazendo então mais:


Empatia e Compaixão

Reconhecer a falta de livre-arbítrio pode aumentar nossa empatia e compaixão pelos outros. Se entendermos que as pessoas não escolhem suas ações de forma totalmente livre, podemos ser mais compreensivos em relação aos erros e falhas dos outros, bem como aos nossos próprios.


Sistema de Justiça

No contexto do sistema de justiça, essa perspectiva pode levar a uma abordagem mais reabilitadora do que punitiva. Em vez de focar na punição, podemos nos concentrar em entender as causas subjacentes do comportamento criminoso e trabalhar para reabilitar os indivíduos. Sim, quase utópico, mas uma discussão necessária por conta de várias condenações indevidas.


Autoconhecimento e Autocompaixão

Para o indivíduo, aceitar que o livre-arbítrio é uma ilusão pode levar a um maior autoconhecimento e autocompaixão. Podemos parar de nos culpar excessivamente por nossas falhas e limitações e, em vez disso, reconhecer que estamos fazendo o melhor que podemos dentro das circunstâncias que nos foram dadas.


Motivação e Mudança

Por outro lado, algumas pessoas podem se preocupar que essa visão reduza a motivação para mudar ou melhorar, ou mesmo justificar ações impensadas. No entanto, tanto Harris quanto Sapolsky argumentam que entender os fatores que influenciam nosso comportamento pode, na verdade, nos capacitar a fazer mudanças mais informadas e eficazes em nossas vidas.


Concluindo


Para fechar o artigo, trago um dos maiores estudiosos do budismo, especialmente o budismo Tibetano, professor do Smith College e professor visitante em Harvard, autor de  “Losing Ourselves: Learning to Live Without a Self”, (Perdendo a si mesmo: Aprendendo a viver sem um eu, em tradução livre).


Sua visão é profundamente enraizada nos princípios budistas de interdependência e a natureza ilusória do eu e, inclusive, traz uma conexão extremamente interessante com o #estadodeflow.


Jay Garfield e o Livre-Arbítrio

Interdependência: 


Garfield adota a ideia budista de que todos os fenômenos, incluindo as decisões humanas, são interdependentes e constituídos por uma vasta rede de causas e condições. Isso significa que nada acontece isoladamente; nossas escolhas são influenciadas por fatores internos (como nossos pensamentos e emoções) e externos (como nosso ambiente e circunstâncias sociais).


A Ilusão do Eu Permanente: 

No budismo, o "eu" não é visto como uma entidade fixa e independente. Em vez disso, o que chamamos de "eu" é composto por um fluxo contínuo de experiências, sensações, pensamentos e sentimentos, todos interrelacionados e em constante mudança. Garfield argumenta que essa visão desafia a noção tradicional de livre arbítrio, que pressupõe um agente independente tomando decisões.


Livre-Arbítrio Condicionado/Condicionalidade das Ações: 

De acordo com Garfield, nossas ações são condicionadas por uma rede de influências e não são produtos de uma vontade totalmente livre e independente. Isso significa que, embora possamos sentir que estamos fazendo escolhas livres, essas escolhas são moldadas por uma multiplicidade de fatores que muitas vezes estão fora de nosso controle consciente.


Responsabilidade e Intenção: 

Mesmo dentro dessa estrutura condicionada, Garfield enfatiza a importância da intenção e da responsabilidade moral. No budismo, a intenção por trás de uma ação é crucial para determinar seu valor moral. Praticar a atenção plena (mindfulness) nos ajuda a estar mais conscientes das influências sobre nossas ações e a tomar decisões de maneira mais consciente e ética.



Jay Garfield



Jay Garfield e o "Flow"


O conceito de "flow" foi desenvolvido pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi e refere-se a um estado de imersão total e envolvimento em uma atividade (veja mais aqui). Garfield relaciona esse conceito com a prática budista e a experiência do livre arbítrio de maneira interessante.


Flow e a Experiência da Interconexão


Imersão Total: Quando estamos em #flow, estamos completamente absorvidos na atividade que estamos realizando. Isso implica uma perda de autoconsciência e uma sensação de unidade com a tarefa. De certa forma, essa experiência pode ser vista como uma manifestação da interdependência budista, onde o "eu" se dissolve no processo de ação.


Liberdade na Condicionalidade: No estado de flow, as ações parecem fluir de maneira natural e sem esforço. Garfield sugere que essa experiência pode ser um exemplo de como a liberdade pode ser encontrada dentro da condicionalidade. Embora nossas ações sejam condicionadas, podemos experimentar uma forma de liberdade quando estamos completamente presentes no momento e em harmonia com a fluidez dos eventos.


Flow e Atenção Plena


Atenção Plena (Mindfulness): A prática da atenção plena no budismo envolve estar plenamente consciente do momento presente, sem julgamento. Esse estado de atenção plena é semelhante ao estado de flow, onde estamos totalmente presentes e engajados na atividade.


Ação Consciente e Ética: Garfield argumenta que tanto a atenção plena quanto o estado de flow nos permitem agir de maneira mais consciente e ética. Quando estamos em flow, nossas ações são mais harmoniosas e alinhadas com nossas intenções profundas, o que se alinha com a prática budista de agir com intenção consciente.


Jay Garfield oferece uma visão do livre arbítrio que está profundamente enraizada na filosofia budista. Ele sugere que nossas ações são condicionadas por uma rede complexa de influências, desafiando a noção de um livre arbítrio independente. No entanto, ele também enfatiza a importância da intenção e da responsabilidade moral.


O conceito de flow se alinha com a visão de Garfield ao demonstrar como podemos experimentar uma forma de liberdade dentro da condicionalidade. Quando estamos em estado de flow, estamos completamente imersos na atividade, experimentando uma sensação de unidade e liberdade que reflete a interdependência budista e a prática da atenção plena.


Essas perspectivas nos convidam a reconsiderar nossa compreensão do livre arbítrio e da liberdade, reconhecendo as complexas influências que moldam nossas ações e a importância de agir com consciência e intenção.


Em resumo, a ideia de que o livre-arbítrio não existe pode nos levar a uma visão mais empática e compreensiva da responsabilidade pessoal, tanto em relação a nós mesmos quanto aos outros. Isso pode promover uma sociedade mais justa e compassiva, ao mesmo tempo em que nos ajuda a entender melhor as complexidades do comportamento humano.


Free Will – Livro de Sam Harris sobre Livre Arbítrio.

A controvérsia do livre-arbítrio: As ideias de Robert Sapolsky. https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2qeqq2dnx6o

Livro Jay Garfield

Livro Katrijn Van Oudheusden

https://a.co/d/8g8n03z (em breve em português)




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"Psiconauta" é uma palavra baseada em raízes gregas que se traduzem em “explorador da mente”. É uma mistura de "psico'', um prefixo usado para descrever processos mentais ou práticas como psicologia e termos como argonauta e astronauta, cujas “viagens e explorações dos mares e do espaço” evocam uma transcendência elevada ou espiritual. A ideia é mensalmente provocar, refletir e agir sobre temas da mente e espírito.

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