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Foto do escritorCadu Lemos

#01/Flow, Xamanismo e Psicotecnologias


Arte: Alexey Bachtiozin


Esta é edição inaugural do “Psiconauta”, newsletter que Cadu Lemos e o time do Projeto Flow vão produzir mensalmente.

Neste espaço, questões específicas do entendimento do homem e sua relação emocional e mental (consciente e subconsciente) com o mundo, onde o Flow, o estado ampliado de consciência, ocupa destaque.

Outros temas como meditação, atenção plena (mindfulness), respiração, sono, neurociência, psicodélicos, neurofeedback e biofeedback, sonhos lúcidos, coerência cardíaca, que instigaram nomes como Jung, Reich, Maslow, Csikszentmihalyi, entre outros, também vão ser abordados, sob uma curadoria rigorosa.

Antes de mais nada, o porque do nome:


"Psiconauta" é uma palavra baseada em raízes gregas que se traduzem em “explorador da mente”. É uma mistura de "psico'', um prefixo usado para descrever processos mentais ou práticas como psicologia e termos como argonauta e astronauta, cujas “viagens e explorações dos mares e do espaço” evocam uma transcendência elevada ou espiritual.


O tema é vasto e este espaço não tem a pretensão de ser uma fonte de consulta, ao contrário, leal ao nosso lema de provocar, refletir e agir, aqui vamos debater como as ferramentas dos psiconautas podem nos ajudar a lidar com esse momento delicado que a humanidade enfrenta, em vários aspectos.

Esta primeira edição vai abordar a cognição como nosso maior diferencial e ao mesmo tempo, aparentemente, nossa maior fragilidade (em futuras edições comentarei porque).



John Vervaeke


Há alguns anos, acompanho o trabalho de John Vervaeke, professor de ciência cognitiva na Universidade de Toronto que se dedica ao entendimento dos processos pelos quais a humanidade foi moldada ao longo de muito tempo, desde os caçadores e coletores aos xamãs, que facilitavam o processo da caça através do acesso a estados alterados de consciência e também o Flow, que, segundo ele, já era uma condição perseguida pelos nossos antepassados.

O começo (ou não)

O xamanismo é uma prática ancestral, tão remota quanto a consciência do Homem. Muitos historiadores, arqueólogos e antropólogos acreditam que sua origem remonta à Europa do final da Idade da Pedra, entre 20.000 e 30.000 anos atrás.

A palavra xamã (saman, shaman) é originária da tribo Tungus na Sibéria. Os antropólogos cunharam este termo e o usaram para se referir aos líderes espirituais e cerimoniais entre as culturas indígenas em todo o mundo. A palavra xamanismo pode ser usada para descrever as antigas práticas espirituais dessas culturas indígenas. Claramente, as inúmeras semelhanças entre várias tradições antigas desempenharam um papel na generalização contínua da palavra.

Nas últimas décadas, o termo “xamanismo” foi popularizado em todo o mundo ocidental, especialmente nos círculos da nova era que passa a ter a denominação de ‘neoxamanismo”. Hoje, pode ser difícil distinguir entre formas tradicionais de xamanismo e práticas modernizadas, muitas vezes esotéricas, que utilizam o termo.

Pode-se ver o xamanismo como a sabedoria espiritual universal inerente a todas as tribos indígenas. Como todas as práticas espirituais antigas estão enraizadas na natureza, o xamanismo é o método pelo qual nós, como seres humanos, podemos fortalecer essa conexão natural.

A criação de significado, sabedoria e estados alterados de consciência estão inter-relacionados e as práticas xamânicas produzem mudanças na atenção e no funcionamento do cérebro.

Durante os rituais de canto e dança, uma enorme energia metabólica entra em ação ao som compassado de tambores; a prática de se contar histórias, alterando o senso de identidade das pessoas e também, provavelmente, a utilização de um conjunto de práticas para se aprender a acessar o estado de Flow, eram comuns naquele tempo (e ainda hoje).




Quando o xamã ativa o Flow, é algo quase como uma experiência mística (como considerou o escritor William James, no final do século 19).

Os estados ampliados de consciência alteram e melhoram a construção de significados, proporcionam insights e facilitam a capacidade de caça e cura, melhorando assim também, a sobrevivência dos nossos ancestrais.

Essas são práticas intuitivas e o xamã sabia como fazer isso. Ele era um verdadeiro especialista em entrar no estado de Flow e te-lo por perto era o que diferenciava morte e vida naqueles tempos.

Psicotecnologias

Quando ouvimos a palavra “tecnologia”, pensamos em dispositivos que resolvem problemas. A palavra “psicotecnologia” é usada na Ciência Cognitiva para descrever nosso kit de ferramentas mentais. A alfabetização e a numeracia são exemplos dessas ferramentas.

Psicotecnologia também é um termo usado por John Vervaeke para descrever maneiras pelas quais processamos informações de maneira padronizada, o que melhora nossa cognição, seja para nós mesmos ou coletivamente.

Um exemplo poderoso de uma psicotecnologia eficaz é a chegada da alfabetização e, em particular, da alfabetização por letras, substituindo os sistemas ideográficos, como os hieroglifos mais complicados dos egípcios ou a escrita cuneiforme dos sumérios da Idade do Bronze.



Vervaeke compara as psicotecnologias a um software (a ferramenta) que roda no mesmo hardware (o cérebro) e melhora muito sua funcionalidade.

Em sua introdução à série de palestras Awakening from the Meaning Crisis, Despertando da Crise de Significado, Vervaeke aponta para a capacidade do cérebro de usar ferramentas e até modelá-las como se fossem uma parte física do corpo.

Em uma destas palestras, apontou para vários exemplos de ferramentas que ele estava usando no momento - suas roupas, óculos, relógio, bem como o auditório e seus equipamentos - ele explicou como essas ferramentas podem se ajustar fisicamente ao corpo e melhorar sua biologia.

As roupas permitem que uma pessoa modifique sua capacidade de se mover por um ambiente e carregar coisas.

Uma caneta permite que uma pessoa deixe marcas permanentes em um quadro branco. De maneira semelhante, uma psicotecnologia se adapta ao cérebro e melhora sua função.

Assim como os humanos nascem sem ferramentas físicas, eles também nascem sem psicotecnologias. Por exemplo, os humanos não nascem alfabetizados, precisam aprender essa psicotecnologia.

O xamanismo é uma forma de "psicotecnologia". O Flow, é sua ferramenta.

Os humanos são ciborgues natos, cujas mentes evoluíram para usar ferramentas/máquinas. Quando você começa a usar uma ferramenta, após um período de tempo, sua mente começa a modelá-la como parte de seu corpo - basta ver o que acontece quando você sai sem seu smartphone ;).

Isso vale para ferramentas cognitivas também. As psicotecnologias, como todas as ferramentas, se ajustam à sua biologia/cognição e a aprimoram.


O xamanismo evoluiu como uma psicotecnologia porque estados alterados de consciência permitiram a ruptura de padrões, que por sua vez reformularam a capacidade de enxergar um problema e chegar ao momento “aha!”, a sacada, o“insight”.


Benefícios das Psicotecnologias

Vervaeke define psicotecnologia como uma maneira padronizada de fazer o processamento de informações que melhora e aprimora sua cognição ligando cérebros. Seu cérebro para você mesmo e também seu cérebro para o cérebro de outras pessoas.

Usando o exemplo da alfabetização (letras), Vervaeke explica que ela permite que uma pessoa examine seus próprios pensamentos e cognição, dando-lhes a capacidade de escrever as coisas e voltar a elas mais tarde, fazer anotações e externalizar ao invés de guardar na memória. Ela permite que uma pessoa reflita, se torne mais consciente de seus próprios pensamentos e também corrija esses pensamentos. Não apenas uma pessoa pode usar essa ferramenta para observar sua própria cognição, mas também pode compartilhar seus pensamentos e ideias com outras pessoas.

Existem três grupos de psicotecnologias que trabalham em conjunto: Mental, Corporificada (uso de todos os sentidos) e Farmacológica. Elas são usadas para alcançar o insight, a autotranscendência e o cultivo da sabedoria. Vamos descrever estas psicotecnologias com exemplos claros:


  1. A psicotecnologia mental inclui fala, alfabetização, numeramento, metáfora, meditação e práticas espirituais.

  2. A psicotecnologia incorporada inclui jejum, meditação, isolamento sensorial, privação do sono, batidas binaurais, técnicas de respiração, ioga, artes marciais e outras formas de exercícios físicos.

  3. A psicotecnologia farmacológica são compostos que modificam a cognição, desde nootrópicos como ginseng, guaraná e gingko biloba, até cafeína,ômega 3, cannabis, psilocibina, LSD, DMT (dimetiltriptamina) entre (muitos) outros.


Psicotecnologias mais potentes devem ser cuidadosamente introduzidas sob a orientação de especialistas.

Na próxima edição, vamos explorar o tema dos estados alterados de consciência e referências como Stanislav Grof, Terence Mckenna, Timothy Leary e John C Lilly entre outros.


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